O negócio se deu numa dessas livrarias da moda. Esses ambientes proto-intelectuais da moda, onde bebe-se café, folheia-se um livro de arte da Taschen e várias expressões de constipação intelectual pululam.
Era uma entrevista para uma revistinha da moda. A Repórter fez o dever-de-casa. Era nova e se sentia engolida pela fama do Intelectual, completamente intimidada. Ele estava atrasado, mas ela sabia que ele se atrasaria, pois é muito próprio de um intelectual daquela envergadura. Ele chegou com uma hora e cacetada de atraso, e já se sentou reclamando, o que é muito próprio de um intelectual daquela envergadura.
Repórter: Boa tarde senh...
Intelectual: ... horror! Um calor horroroso! Não sei como essa gente consegue, honestamente!
Repórter: Oh, sim, quer dizer, um calorão, realmente. Digo, desculpe! Eu realmente... Quer dizer, terrível, realmente... Terrível.
Intelectual: Não é? Terrível. “O horror, o horror!”, como disse Wilde (risos)... Genial, genial... Mas então, já podemos começar?
Repórter: Claro, claro! Pois então, podemos começar pelo...
Intelectual: ... Sim, pelo meu artigo “Nietzsche e Jonhonho”. Veja bem, isso foi uma colaboração minha com o professor George Wistermann, um tremendo boliviano da linhagem dos maiores lógico-empiristas do norte da... – Rapaz (gritando o garçom, que na verdade é apenas um atendente de balcão da livraria) me traz aí um machiatto! Você conhece a história do café?
Repórter: Não é a história das cabras árabes que comiam os...
Intelectual: Não, não! Isso é uma bobagem. Não. O café é coisa brasileira. Natural daqui mesmo. Tem aí uma lenda que conta que um casal de índios foram separados pela morte do índio. Aí dos olhos da índia, o deus Mitra, muito piedoso, fez dos olhos da índia os primeiros grãos de café. Entendeu?
Repórter:... Mas essa não é a história do... Peraí: Mitra?
Intelectual: (ainda divagando) ... Porque essa conversa de árabe, isso é do mais puro derrotismo absenteísta (“Absenteísta?” – teria pensado a repórter). Veja bem, porque o Foucault já falava disso tudo aí! Ta lá na Microfísica! É quântico, entende? Tudo quântico!
Repórter: Porque é Microfís...
Intelectual: Exatamente! E poucas pessoas se dão conta disso! Olhe bem, se você considerar a classe intelectual desse país – olhe bem: e isso não é o mais grave! Porque há uma racinha que se auto-intitula “intelectual”! Jung já falava disso há mais de 200 anos! É uma supressão extemporânea da vontade de fruição! Isto é muito claro!
Repórter: A compleição do animus... (tenta a repórter, meio que entrando na onda, mesmo sem saber).
Intelectual: Não! Porra nenhuma.(excitado) A questão aqui é clara: Há um sentimento helenista suprimido. Mas é de cunho coletivo, entende? Vem do âmago. Do ouvido interno, por assim dizer. E diz: “Seja!”. Pura potência! Como se repreende uma – Rapaz! Meu café, cacete! – Como se repreende... Porque existe essa canalha, entende? Um bando de veados, se você quer saber. Nem valem a pena, nem valem a pena... Olhaí o caso do Toninho Bittencourt!
Repórter: Quem?!
Intelectual: (nem aí pra repórter) ...totalmente cartesiano, e quando nós estávamos voltando de Cuba, ele disse a coisa mais coerente que um marxista convicto poderia dizer. Eles haviam confiscado alguns de seus pertences quando ele...(pausa) porque confisco é invenção romana! Tem coisa que não sai de moda de jeito nenhum. (risos)
Repórter: E como foi o episódio de sua prisão, durante a ditadura?
Intelectual: (num tom muito satisfeito, como uma idosa hipocondríaca quando lhe dizem “Você não parece muito bem...”) Pois é... Foi em 1984, auge da repressão. Eu estava no apartamento de Maristelinha Donabonni, esposa do queridíssimo Armindo Cabayba, repórter da Fatos e Fotos, que era uma verdadeira pedra no sapato dos militares. Então, numa discussão na varanda alguém havia citado Bakunin...
Repórter: ... Um perigo na época!
Intelectual: ... Exatamente! Porque Bakunin tem alguma coisa de sedutor. De um humanismo absurdo! Um humanismo poderoso! Veja o caso do Camus, um tremendo ensaísta: “Caprina sine puditia”, é o que eu digo. O resto, o resto...
Repórter: ... E então a políc...
Intelectual: ...num romance do Balzac! Está tudo lá! Como eu disse: Freud leu o mundo! Não há mais idéias desde Freud. Eu havia dito isso numa conferência em Dresden – um verdadeiro cu de mundo, diga-se de passagem – e foi um busílis desse tamanho (risos)! Mas, então, quando voltamos de Havana, eu e o Toninho, um gigante em política externa... Maior que Churchill, maior que Kissinger, maior que essa cambada toda! Você sabia que o Toninho foi o artífice da Revolução Cubana?
Repórter: Jura?
Intelectual: ... Ele estudou em Salta, junto com o Che. Che queria fazer dança contemporânea na época. Juro! (risos) Eu sei porque eu o conheci pouco depois. Aí o Toninho, um tremendo intelectual, injustiçado como poucos!... Ele já morava em Córdoba, uma província esquecida por Deus, mas lindíssima. Conhece?
Repórter: Ainda não...
Intelectual: Ah, mas você precisa! Sartre dizia: “Acima, Deus, abaixo, o diabo, no meio, Córdoba!”. Esse foi um homem que entendeu o significado do termo “Copulatum et malum remuneratum”. N’A Náusea, que é da Simone, na verdade... Uma mulher moderníssima! Ela dizia... Observa só: ele dizia como é belo – presta muita atenção – como é BELO o ser gregamente falando, entende? Helenisticamente. A coisa fugidia, a coisa devinística. É um tremendo problema, mas é um belíssimo problema. Muito quântico. Esse garçom está de sacanagem!
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¹A palavras loucas, orelhas moucas.
O autor desta postagem sem dúvida alguma é dentronense, mas preferiu não se identificar neste momento.
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